21/5/63
A meu filho que ainda não nasceu: não fui sempre mudo, costumava falar e falar e falar e falar, não conseguia manter a boca fechada, o silêncio se apoderou de mim como um cancêr, era uma das minhas primeiras refeições na América, tentei dizer ao garçom: "O modo como você acabou de me passar essa faca me lembra..." mas não consegui terminar a frase, o nome dela não vinha, tentei mais uma vez, não vinha, ela estava presa dentro de mim, que estranho pensei, que frustrante, que patético, que triste, peguei uma caneta no meu bolso e disse "Anna" no guardanapo, aconteceu de novo depois, e de novo no dia seguinte, queria falar somente a respeito dela, continuou acontecendo, quando não tinha uma caneta escrevia "Anna" no ar.(...). "E" foi a próxima palavra que perdi, uma palavra tão simples de dizer, uma palavra profunda demais para ser perdida, eu precisava dizer "conjunção", o que soava ridículo, mas fazer o quê, "Gostaria de um café conjunção alguma coisa doce", ninguém seria assim por opção. "Querer" foi uma palavra que perdi bem no início, o que não quer dizer que parei de querer coisas - queria as coisas mais ainda - , mas perdi a capacidade de expressar o querer, então em vez disso eu usava o "desejar". "Desejo dois pãezinhos", (...) "Eu" foi a última palavra que pude dizer em voz alta, o que é terrível, mas fazer o quê, andava pela vizinhança dizendo "Eu eu eu eu". "Você quer uma xícara de café, Thomas?" "Eu." "Quem sabe algo doce para acompanhar?" "eu" (...) e depois perdi "eu" e meu silêncio se tornou completo. Comecei a levar comigo cadernos em branco como esse e ia preenchendo-os com tudo que não podia dizer, foi assim que começou, se queria dois pãezinhos do padeiro eu escrevia "Quero dois pãezinhos" na primeira página em branco e mostrava a ele, e se precisava de ajuda de alguém eu escrevia "Socorro", e se algo me dava contade de rir eu escrevia "Ha ha ha!" e em vez de cantar no chuveiro eu anotava a letra das minhas canções favoritas, a tinta deixava a água azul ou vermelha ou verde, e a música escorria pelas minhas pernas, no final de cada dia eu trazia o caderno para a cama comigo e lia as páginas da minha vida:
Quero dois pãzinhos
FOER, Jonathan Safran Extremamente alto incrivelmente perto Rio de Janeiro. Ed Rocco. 2006, p. 27 - 30.